Ethevaldo Siqueira e o jornalismo de tecnologia no Brasil

“Nós fomos criados num sistema gutenberguiano de papel e leitura e depois descobrimos o computador”.

Ethevaldo Siqueira

No fim de 2005, entrevistei Ethevaldo Siqueira para meu livro-reportagem e projeto do TCC, “Jornalismo Contínuo: Informação depois do Google“. 

Pai do jornalismo de tecnologia do país segundo o Estadão, jornal para o qual escreveu durante mais de quarenta anos, Ethevaldo conseguiu me transportar através de quatro décadas de telecomunicações e história do jornalismo de tecnologia. 

Nos anos 70, o Estadão tinha um único grande computador. O Honeywell Bull1 ficava num salão imenso, todo envidraçado com ar condicionado. No salão, trabalhavam homens de branco, como se fossem médicos, cuidando daquela máquina fantástica que cuidava da contabilidade e de todos os equipamentos de fotocomposição.

Essa imagem me persegue até hoje. “Os homens que trabalhavam lá eram os donos da tecnologia. Ninguém entendia nada. Hoje você tem em cima da sua mesa a sua tecnologia. Você tem Windows no seu desktop e não precisa de nenhum homem de branco para utilizar os softwares”.

O desktop já não é tão necessário. Mas sempre me lembro dos homens de branco quando pego o celular para olhar as mensagens no WhatsApp.

Leia abaixo o relato do jornalista.

DAS LINOTIPOS AO PC

Há 38 anos o jornalismo era feito com uma tecnologia praticamente igual à de um século antes, num trabalho que hoje seria considerado artesanal.

As linotipos eram tipos metálicos fundidos na hora. Alguém copiava as laudas numa dessas máquinas e transformava o texto em linhas, com tipos de chumbo, praticamente do jeito que Gutenberg havia inventado. Apenas a máquina que fundia os tipos tinha sido inventada por Mergenthaller. Essa máquina duraria praticamente um século, até os anos 80.

O consumo de energia era brutal, porque você precisava fundir as peças com eletricidade. Quando as barras de chumbo eram fundidas, as formas faziam letras, as letras faziam linhas, as linhas faziam parágrafos e assim por diante.

Depois a linotipo foi substituída pela fotocomposição. Tinha esse nome porque as letras eram fotografadas, cortadas com estilete e coladas em cima da página do jornal. Depois do chumbo, veio a composição eletrônica. Hoje o processamento de texto é completamente eletrônico.

O Estadão tinha 147 linotipos, máquinas que tinham uma altura de 3m. Hoje são 3 mil computadores, distribuídos para todas as funções, cada jornalista trabalha no seu. São terminais para o Jornal da Tarde, para o Estadão, para edições especiais, além da parte administrativa do jornal, a parte de contabilidade. Tudo informatizado, coisa que era impensável há 38 anos.

Houve uma série de problemas e de desafios. Era uma transformação completa dos parâmetros dos profissionais. Tinha o jornalista que não queria trabalhar num computador porque tinha medo de uma nova máquina. “Quero a minha máquina de escrever”, ele dizia.

Em 1982, a Folha de S. Paulo tirou as máquinas de escrever e colocou terminais. Isso criou um impacto. De um dia para o outro, o jornal demitiu 72 jornalistas que trabalhavam na revisão. Não precisavam mais de revisor. No monitor, era possível fazer a própria revisão. Era possível também colocar um software que eliminasse os erros de grafia. Um subeditor podia ler no terminal dele o que o jornalista tinha escrito em outro terminal, e fazer uma revisão inerente ao processo.

Hoje não se fala mais em revisor. Acabou uma profissão. Eles poderiam ter sido reaproveitados como redatores, repórteres. Mas o objetivo do jornal na época era reduzir custos. E a tecnologia, ao eliminar determinadas etapas do trabalho, determinadas funções e até profissões, possibilita enxugar o quadro.

LEADS DE PAPEL

Quando você começava a escrever, precisava de um bom lead, uma boa abertura para a matéria. Então você colocava uma lauda e tentava fazer um lead. Se não conseguia, em vez de riscar, você fazia uma bola de papel e jogava no chão. No fim, as cestas de lixo estavam cheias de laudas com os leads que não eram utilizados.

Uma outra técnica que usávamos era começar a matéria pela lauda número 2. E no fim, então, você concluía com um lead bem feito.

Havia uma montanha de papel de folhas em branco diagramadas para o formato padrão de uma lauda, 20 linhas e 70 toques. Você escrevia as vinte linhas ali, e os toques eram contados manualmente. O diagramador desenhava com régua e papel do jeito que sairia na página. Quando não cabia, era preciso reduzir a matéria. Ou você reescrevia ou eliminava à caneta o que queria tirar, e o diagramador excluía da página depois.

TELECOMUNICAÇÕES

O que mais vi mudar foram as telecomunicações. O jornal tinha 6 linhas telefônicas, que entravam no PABX e eram distribuídas para 200 pessoas. Todos tinham ramal, mas não havia tronco de saída. O sistema telefônico brasileiro era minúsculo comparado ao que é hoje. E era inteiro analógico.

Não havia Internet ou fax. Havia umas máquinas imensas que recebiam as fotografias por sinais de longa distância. Eram as chamados radiofotos. A máquina tinha um cursor que riscava a página de ponta a ponta e a foto final era toda cheia de sombras e manchas. Parecia um esboço da foto que foi enviada, como se tivesse sido transmitida de um outro aparelho.

O fax chegou para nós nos anos 80. Até lá, só tínhamos telex e radiofoto. A radiofoto era uma máquina imensa que custava 100 mil dólares. Hoje você recebe num anexo de e-mail uma foto perfeita, digitalizada.

AS AGÊNCIAS DA VARIG

A mudança mais importante foi a conjugação do computador com as comunicações. Sempre fiz cobertura internacional. Quando viajava para cidades como Paris, Nova York ou Tóquio, perdia o contato com o país. Os jornais não davam notícias daqui, só se matassem um presidente. Raras vezes você conseguia informação recente do Brasil.

Hoje, de qualquer lugar no mundo, quando você entra na Internet, fica sabendo do que aconteceu ontem.

Por exemplo, o habeas corpus do Maluf acabou de ser concedido. Na Internet eu tenho um mundo, e não precisa ser na minha mesa. Se eu estiver na Itália, entrarei na mesma página que acesso aqui.

Naquela época, depois de uma semana de Paris, eu estava totalmente desatualizado. Então eu ia até uma agência da Varig. Eles às vezes levavam notícias de uma semana atrás. A Veja da semana anterior, jornais de 3 ou 4 dias atrás.

Se a nossa atualização não vinha pela Varig, a outra opção era fazer uma ligação internacional telefônica, que era muito cara. Nos anos 70, um minuto de ligação internacional custava de 5 a 10 dólares.

As matérias eram enviadas pelo telex, e precisavam ser redigitadas no Brasil. Quem redigitava muitas vezes introduzia erros, e eu não podia fazer a revisão final do meu próprio texto. Fotografia era impossível mandar. Mandávamos um rolo de filme. O piloto da Varig trazia e alguém do jornal ia até o aeroporto buscar. Se fosse num vôo de Tóquio, que leva 26hs de viagem, minha matéria já saía com 26hs de atraso. No mínimo 26hs, porque era a partir dali que a matéria ia começar a ser preparada.

PRIMEIROS ANOS DA WEB

A Web entrou nas redações no começo dos anos 90, muito lentamente. E entrou porque muitos de nós tínhamos contato com a USP, que tinha uma rede precursora da Internet, a Bitnet. A diferença é que a Bitnet não usava a linguagem da Internet, como HMTL. Você não tinha um browser para navegar. Na verdade você transmitia e recebia blocos de texto.

Hoje você tem um mundo em tempo real.

A notícia de maior impacto para milhões de pessoas, milhares de jornalistas no mundo, foi a derrubada das torres gêmeas de NY. Eu estava na frente daquele computador Macintosh. Assinava um serviço do NYTimes chamado news alert. Estava escrevendo quando começou a piscar o news alert, dizendo que um avião acabava de se chocar com a torre sul. Supunha-se que era um acidente.

JORNALISMO COLABORATIVO

Com o blog que vou lançar no mês que vem, estou abrindo um leque para muito mais gente do que o leitor de papel.

Todos os meus artigos vão ficar arquivados, como também a coluna do Estadão, e haverá uma agenda com sugestões daquilo que você não pode perder na minha área.

Há jornalistas que hoje têm muito mais leitores nos seus blogs do que nos jornais tradicionais. Há vários canais para você falar com o público. O livro é um canal. Se você abrir o meu livro, vai encontrar meu e-mail. É fundamental que eu tenha este e-mail. Já o blog oferece uma característica desse jornalismo em fase eletrônica, que é um feedback muito mais rápido.

Os blogs exigem especialização. O jornalista obtuso, que não conhece nada, não vai ter muito espaço. Se você assistiu a uma explosão, acidente, assalto, você vai contar aquilo. Mas você não vai assistir a um flagrante todos os dias. Você não vai ter repórter para ficar em cada local do mundo assistindo. Mas vai ter testemunhas que podem se manifestar com um celular, ou com câmeras digitais. Está nascendo uma espécie de jornalismo colaborativo.

O que eu acho fantástico como exemplo de jornalismo colaborativo é a wikipedia. E está fazendo jornalismo todos os dias. Eles pegam um fato do dia e dão todo o retrospecto daquela notícia. Você pode fazer um jornalismo de primeira qualidade hoje com fontes confiáveis. Aqui eles não colocam nada que não seja comprovadamente verdadeiro. Por exemplo, se você quiser editar a parte sobre células-tronco, todos os especialistas no assunto vão ler e corrigir ou acrescentar. É um trabalho coletivo, gratuito, espontâneo. É uma rede perfeita do conhecimento.

OS ANOS 90

Quando o historiador, lá no futuro, examinar a década de 90, verá uma década que mudou todos os paradigmas. Cai o muro de Berlim, cai o comunismo. A Internet e o celular emergem e decolam.

A microeletrônica vai ter um impacto nisso com certeza. Entre 1970 e 85, a capacidade de armazenamento dos chips foi multiplicada por mil, passou de um Kbyte para um Megabyte. Depois de mais 15 anos, esta capacidade atingiu um Gigabyte. Em 2015, chegaremos a um Terabyte.

Enquanto o telefone levou 74 anos para chegar ao número de 50 milhões de usuários, o celular levou apenas 5, e a Internet, 4. Houve uma globalização da infra-estrutura de telefone do mundo inteiro.

MOBILIDADE E CONVERGÊNCIA

O jornalismo vai se juntar à mobilidade. O celular terá displays cada vez maiores. Você tem um computador de mão, mesmo que ainda não seja dos mais confortáveis.

O mundo se digitalizou.

Antes, os meios de comunicação eram bem distintos. A imprensa, o rádio, a TV, o cinema, o computador, o telefone eram mundos distantes e hoje estão numa plataforma só: a Web.

O que é a convergência? Computador, telefone e conteúdo.

Você terá acesso à Internet sem computador. Via televisão. Televisão broadcast, televisão digital. Rádio digital.

Você terá uma Internet sonora, que transmite áudio mensagens e videomails. Daqui a 10 anos você terá mais da metade da população do planeta com acesso à Internet.

FUTURO DO JORNAL DE PAPEL

Qual é o futuro do jornal? Os jornais vão desaparecer. Se vão durar mais 20, 30 anos, não sei.

Nós fomos criados num sistema gutenberguiano de papel e leitura e depois descobrimos o computador.

O jornal de papel é muito cômodo. Você volta a página, tira xérox. Ele tem uma série de vantagens para a manipulação, como um livro também tem.

Em novembro do ano que vem haverá o Congresso Mundial do Jornalismo no Brasil. Faço parte da comissão organizadora, e vamos falar do futuro do jornalismo. Todo mundo quer saber o que vai acontecer. Este tema está na primeira linhas das preocupações dos jornalistas e das empresas jornalísticas do mundo todo.

Hoje você precisa competir com a capilaridade da Internet. No Brasil a Internet já atngiu mais de 20 milhões de usuários, muito mais do que o número de leiores de jornais.

A Agência Estado hoje distribui conteúdo para o Brasil todo e concorre com a Folha, o Globo. São poucos geradores, mas começam a proliferar sites informativos e blogs, milhares de novos atores que entram em cena e no conjunto têm muito peso.

O blog do Noblat é um exemplo. Ele passa a receber informações de fontes diferentes dos jornais, e adquire credibilidade. Se a taxa de acerto é muito alta, ele ganha respeito e compete melhor.

Por isso, o Estadão, por exemplo, chamou o Noblat para trabalhar com eles. Não é uma tendência de monopólio, é muito difícil monopolizar a informação. O que pode acontecer às vezes é algum oligopólio, poucos atores produzindo informação.

Uma verdadeira democracia da informação ainda está distante, embora você tenha mais ferramentas e muito mais ONGs falando hoje do que há 20 anos.

A capilaridade da Internet esá aumentando, mas 20 milhões de usuários não entram ao mesmo tempo nem nos mesmos lugares. Não existe uma audiência de 20 milhões de pessoas para os mesmos jornais, para as mesmas fontes de informação.

As comunicações são virais, mas mesmo com todos os blogs, todos os sites independentes, todas as ONGs e os internautas, a grande mídia ainda é dominante.

Mas cada vez mais, há mais nichos de informação. Há uma diversificação. Se você quer variedade, encontra variedade.

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